“Um Limite Entre Nós” combina direção precisa, grandes atuações e a força da peça original • B9

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“Um Limite Entre Nós” combina direção precisa, grandes atuações e a força da peça original

Discreto, mas poderoso, filme aproveita as melhores qualidades de August Wilson, Denzel Washington e Viola Davis

por Virgílio Souza

Em 1983, August Wilson concluiu “Cercas” (que viria a se tornar “Um Limite Entre Nós”), a sexta de dez partes de “Pittsburgh Cycle”, série de peças sobre a trajetória da comunidade afro-americana no decorrer do século 20. Levada a diferentes palcos em mais de quinhentas apresentações nos anos seguintes, a obra se tornou um marco na história do teatro, celebrada ainda por vários dos mais importantes prêmios correspondentes — Pulitzer, Tony e Drama Desk Award, entre outros.

O grande apelo crítico e de público logo atraiu a atenção do ator Eddie Murphy, que curiosamente ensaiava uma virada dramática na carreira e convenceu a Paramount Pictures a adquirir os direitos para uma adaptação para as telas por uma das somas mais altas àquela altura. Dono de certo poder decisório na produção, o autor exigiu um diretor negro. Foi recebido com diversas negativas e, entre 87 e 90, segundo ele mesmo, seu pedido foi ouvido pelos executivos “como uma frase complexa dita numa língua estrangeira”.

Na virada da década, um realizador respeitado, elogiado mundialmente por seu trabalho “sensível e inteligente”, demonstrou interesse na missão. Ele era branco — segundo relatos, o candidato se chamava Barry Levinson e faturaria dez indicações ao Oscar por “Bugsy” meses depois. Desta vez, Wilson negou: “Eu aceito que ele seja um grande diretor. Mas ele não é negro. Ele não é um produto da cultura negra americana — uma cultura que foi afiada pela experiência negra e queimada no forno da escravidão e da sobrevivência — e não compartilha as sensibilidades dos negros americanos”, escreveu.

Denzel Washington no set

Salto para 2010. A morte de Wilson já completa cinco anos e o filme não saiu do papel. Chegou a receber alguns tratamentos e sondar nomes como John Singleton (de “Os Donos da Rua”), mas não ultrapassou os estágios mais básicos da pré-produção. Exceção feita a montagens de menor porte, como aquela protagonizada por Laurence Fishburne algum tempo antes, a peça ainda não retornou ao circuito. Foi Denzel Washington, apresentado à primeira versão do roteiro, quem tomou a iniciativa de levá-la de volta aos palcos. À época, ele havia dirigido apenas um longa-metragem, “Voltando a Viver”, e preferiu somente interpretar Troy, o protagonista, imortalizado por James Earl Jones no original.

Com Viola Davis no papel de Rose e sob a direção de Kenny Leon, “possivelmente o melhor diretor afro-americano da Broadway”, “Cercas” ultrapassou as cem apresentações e atingiu um número recorde de indicações ao Tony, principal prêmio do meio. Só então o ator, baseado no roteiro adaptado pelo próprio Wilson em 1997, decidiu assumir a cadeira de diretor, levando a colega protagonista ao seu lado.

“Não se trata da cor da pele, mas da cultura”. Tanto Wilson quanto Washington entendem que é impossível divorciar as duas categorias, mas ressaltam o fator decisivo da segunda. Essa lógica, que orientou a obra desde sua criação, mais de trinta anos atrás, até a primeira projeção em uma sala de cinema, ajuda a entender uma série de opções tomadas no meio do caminho.

Até as sequências mais simples, rodadas dentro de casa, representam saltos e tomadas de liberdade em relação à peça

A fidelidade ao original é, sem dúvidas, o eixo que sustenta o filme. Os cenários reduzidos, a movimentação geralmente discreta (e muitas vezes inexistente) da câmera, o posicionamento dos atores em cena, as vozes projetadas de suas performances, a fixação ao texto e à cadência específica de cada sílaba pronunciada: tudo isso contribui para a impressão de que a adaptação não é mais que “teatro filmado”, uma definição que infelizmente diminui os dois formatos sem se dar conta de que não compreende nenhum deles.

Se a melhor qualidade do que se tem em mãos é o texto puro e simples, sem rodeios e reduzido a pequenos espaços, qual o problema em armar as situações — acentuando significados e percepções com base em diferentes enquadramentos, movimentos e ordenamentos de planos — para que ele flua seguindo o próprio curso? Indo adiante, por que se imagina que a função do diretor é restrita às letras impressas no papel, não abarcando tudo o que as torna reais, visíveis, capazes de impactar mesmo o espectador no contexto mais distante possível?

O trabalho do realizador na transposição para a tela é muito maior do que simplesmente distribuir os roteiros e gritar entre tomadas. O respeito aos limites do terreno em que a família Maxson vive, por exemplo, não é somente reflexo da proximidade com o material original, tem relação mais profunda com as temáticas discutidas. De maneira similar, é verdade que o longa só escapa da propriedade em raríssimos momentos, mas até as sequências mais simples, rodadas dentro de casa, representam saltos e tomadas de liberdade em relação à peça.

Ciente da força de seus intérpretes, Denzel posiciona a câmera de modo a acompanhar a ação sem provocar distrações

Ao contrário de se esconder na cadeira de direção, Washington toma decisões que enfatizam a relação entre a câmera e os atores, como se fosse levado a mapear os ambientes antes de eleger qual deles encarar. Suas intervenções na construção das cenas conferem maior ou menor peso a elas individualmente — no quintal parece haver espaço para escapar de uma discussão; na cozinha a porta é a única saída. Além disso, as cercas a que o título se refere permitem interpretações variadas, e a maneira como os demais personagens se posicionam diante de sua construção por Troy indica suas diferentes visões e antecipa conflitos inevitáveis. Olhar para a postura de cada um deles enquanto reagem aos colegas de cena é fascinante.

Dois elementos se destacam nesse sentido. O primeiro é o trabalho com os atores. Ciente da força de seus intérpretes, o diretor posiciona a câmera de modo a acompanhar a ação sem provocar distrações. Ao entregar a eles esquemas de identificação fácil (um filho se aproxima para pedir dinheiro, outro desafia a realidade com seus sonhos), o filme consegue concentrar sua atenção na forma das falas e em seus desdobramentos concretos.

Para Rose, determinar onde termina aquele lar significa a possibilidade de manter a família unida e fazer o melhor com o que foi oferecido a ela*, a despeito da instabilidade causada pelos homens ao seu redor, insatisfeitos pelas mais diversas razões — todas elas narrativas tipicamente negras daquela comunidade específica, para onde equipe e elenco rumaram durante as filmagens. Já para Troy, fixar a cerca nas bordas do terreno talvez seja a única chance de afastar seus demônios, manter do lado de fora “aquilo que ele não consegue controlar”.

A figura de seu irmão mais novo (Stephen Henderson) é fundamental para compreender essa dinâmica. Suas aparições quebram a continuidade dos monólogos, sobretudo os do patriarca, e o modo de filmar se agita em sua presença. Seus devaneios são formas de ilustrar a relação do protagonista com o que poderia ter sido — um deles, preso pela frustração; o outro, por um acidente.

“Um Limite Entre Nós” é capaz de sustentar a força de uma peça lendária sem nunca deixar de fazer cinema

O segundo aspecto de maior interesse é a discrição com que Washington emprega uma variedade de recursos cinematográficos, isto é, pertencentes ao formato. De modo a perceber essa ideia, basta observar de perto o trecho em que Cory chega do treino de futebol americano e confronta o pai em frente à varanda. Inicialmente, temos plano e contraplano dos dois envolvidos na discussão, bem como reações isoladas dos coadjuvantes. Quando a mão do garoto busca o capacete no chão, vemos um detalhe dessa ação, responsável por ditar quem está no controle. Em seguida, chegando ao momento mais grave do discurso, a câmera passa a buscar lentamente o rosto do ator principal, alternando ocasionalmente para seu colega de cena de modo a esconder essa aproximação. Finalmente, um deslocamento lateral encontra Rose sem fôlego, tanto a ser dito na expressão que ela carrega.

Assim, sem alarde, a cena se encerra alguns degraus acima de onde começou e, depois de apenas uma transição mostrando a rua iluminada pelo céu de Pittsburgh, a tão adiada cerca precisa de fato ser construída. O efeito não chama atenção para si e, em grande parte das situações, passa sem ser notado. No entanto, é esse tipo de direção que torna “Um Limite Entre Nós” tão poderoso, capaz de sustentar a força de uma peça lendária sem nunca deixar de fazer cinema.

* O perfil de Viola Davis escrito por John Lahr e publicado em edição recente da revista New Yorker (em inglês aqui

) é uma impressionante leitura adicional sobre a vida da atriz, o filme e as questões abordadas por ele.

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